Horus vinha não se sabe donde, passava por um
restaurante universitário. Não era o restaurante da Faculdade da Rua D`Assas,
mais se assemelhava ao velho Restaurante Universítário do Corredor da Vitória,
nos idos de 1964, quando fizera vestibular e frequentava vez por outra aquele
comedouro, povoado de figuras folckloricas, como Wilson o eterno estudante que
já passara por diversos cursos, sem se fixar nenhum ou como Graciliano, poeta nascido em Ubaitaba que, depois do almoço, subia na mesa
e recitava seus versos. Neste momento sobrava comida e se viam bandejas cheias, frutas e nosso
conhecido romeu e julieta. Como Graciliano, subiu numa mesa e passou a andar por
cima delas e embora tivesse vontade de pegar uma daquelas guloseimas, se conteve,
com medo da repreensão do bedel. Havia uma mesa, com sucos gelados, enrolados
em saquinhos plásticos, como um sorvete congelado. Pegou um e começou a morder o
plástico, quando viu vindo um homem negro, visto antes, na entrada. Não tinha mãos, cotó de dois braços, logo percebeu a
reclamação no ar. Perguntou, apontando o
gelado. Posso?
Nada lhe respondeu e armou os bracinhos para lhe socar. Era um neguim careca de olhos
muito vivos, vestido de branco como os açougueiros. Quando tentou lhe socar Horus se protegeu atrás de um
vaso de metal de onde retirara o geladinho. Tentou a segunda vez, Horus o encarou com seus olhos de falcão
Abriu a boca, pôs as mãos em concha e emitiu,
como Seth, um sopro. Uma torrente impetuosa saiu de sua garganta e sacudiu o
homezinho a metros de distância. Ele começou a fazer sua confissão como se
estivesse diante da Deusa pesadeira de almas:
“Eu não
amaldiçoei a Deus”, e começou a derreter-se, como o sorvete no vento; “Não tenho me oposto à minha
família e parentes”, as pernas se desfazem; “Eu não cometi crime”, os bracitos
se despegam do tronco; “Eu não cometi
adultério”, esvai-se até a cintura; “Eu não roubei”, o tronco se desmilingue; “Eu
não proferi mentiras”, é a vez do pescoço; “Eu não defraudei o homem humilde de sua
propriedade” Some-lhe a cabeça, os olhos, ouvidos e boca, num gemido, o último
dos moribundos. Mistérios da vida. Vozes, vozes invadem o ar. Ouço, aturdido.
Por quê temer a morte?
É o Requiem de Nunes Garcia. Longe nas Minas Gerais fui
parar. Vejo cenas assustadoras, aquelas pintadas por Bosch. Corpos disformes,
braços voando, cabeças pendidas, bocas e bicos de animais gotejando sangue, almas penadas, máquinas fantástica vomitando
gente, freiras orando sob olhar de uma coruja diante de uma madre de focinho de
porco. Anjos, demônios, homens e bichos se igualando, ora corpo de bicho, ora
corpo humano. Volto a Capela, na igreja os restos mortais de Joaquim Machado.
No Monte braços, pernas, velas votivas. E na Capela da Santa Cruz do Monte em Mairi. Hoje ainda sonho com seus
ossos e grutas. Será por isto que tenho medo de altura? Longe se vai o tempo
menino. Velhas rezadeiras, terço na mão, xale na cabeça rezam em voz alta. Benditos
e jaculatórias. Esmagado fico. Hora de acordar, não quero ver o homenzinho se
derretendo. Um filete d´água saindo do que era seu corpo. Formará um rio? Água, sonho do nordestino,
mesmo com sacrifício humano. Não comiam os tupis seus adversários para adquirir
sua coragem? Também podemos beber d´om-água.
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